segunda-feira, 21 de maio de 2012

Tudo está bem



Você se lembra de quando disse que estava tudo bem?  Pois você não disse.  Mas te fizeram acreditar que havia dito.
Suas memórias foram, são, forjadas.  E se você repete uma história um bom número de vezes, ou se a repetem em seus ouvidos, você acaba acreditando no que é contado.  Cuidado com o que você lembra e mais cuidado ainda com os sentimentos evocados.  Não acredite que algo aconteceu num passado.  Toda partida nos acompanha como presença.  Não acredite em lembranças evocadas do ontem.  A evocação é, na verdade, recriação.  O sentimento nunca vem de ontem, ele é reproduzido, produzido de novo.  Por isso é tão estranho este ato de partir.  Precismos partir a todo momento, mesmo acreditando estar apenas falando de algo que já se foi.  Apesar desta crença, a de que falamos de algo que não acontece agora, recriamos esta partida sem o perceber.
Estamos partindo sem o perceber, indo embora sem nos darmos conta, andando em círculos, ou de círculos em círculos.
É por isso que escrevo estas mensagens, pois aos seis anos de idade eu desconfiei do que diziam que eu dizia, desconfiei que minhas memórias estavam em algum outro lugar e que eu me enganaria muito até achar uma pista.  Eu coloquei estas pista na forma de um outro eu com as mãos nervosas diante de quebra-cabeças que só poderiam ser resolvidos com uma voz amorosa ao lado.  Eu, que sou tão cético, mas sou o mais crédulo dos românticos, deixo esta outra mensagem dentro da mensagem: sempre acredite na voz que esquenta seu coração.  É um calor que cria ar fresco.
Quando você descobrir  que os quebra-cabeças são feitos de padrões e repetições, olhe esses padrões.  Recuse repeti-los!  Entenda um apenas, e você terá entendido todos.  Supere um, e você terá superado todos.  Só então diga que tudo está bem.

Nascer


Pode parecer estranho uma data, uma hora, pesar como se o ar congelasse no peito.  Mas é exatamente assim que acontece.  Muitas vezes a data, ou melhor, seu peso, é demais para permanecer parado.  É preciso andar, pegar um avião, demarcar novos limites em novos recifes, encontrar, ainda que por pouco tempo, um outro natal.  Mas tome cuidado quando for o medo que te fizer agir com cortesia, o caráter que ele molda é sempre o de uma mentira.  Por outro lado, lembre-se da cortesia daquele motorista de táxi que retornou para devolver a passagem que voce havia esquecido em seu carro.  Lembre-se da cortesia viral, da gentil profecia de gentileza gerando gentileza.  Mas não se confunda com essas palavras,  para que elas não soem pelo que não pretendem ser. Aqui, estou às voltas com essa fuga com data de retorno, com esse banho de sol ou indulto de fim-de-ano.
Sabe o quanto andamos desde a última parada? Já estamos praticamente do outro lado do sol e esta nave corre tão macia pelos trilhos, que não sentimos nenhuma sacudida.  E “do outro lado do sol” é o ponto mais distante a que podemos chegar.  Mas ao mesmo tempo, eu sei, é como se uma flecha atravessasse o coração, como se um túnel abrisse caminho pelo meio do sol escancarando o ponto de partida.  É como se a partida fosse um sair mas sem chegar a lugar algum, um suspense de quem se encontra entre duas cenas de um filme inacabado.  Mas isso é assim com tudo, e nem por isso as flores deixam de acordar.
Olhe, a chuva corre por entre os fogos, e ainda assim olhamos o céu esperando um milagre em forma de cor, um milagre que exploda o cinza e crie uma multidão de azuis e verdes e vermelhos, para que  nós possamos nos reconhecer, para que acreditemos, uma vez mais, em novos natais, e para que, uma vez mais, não tenhamos medo da escuridão.
Olhe, é essa mesma escuridão na qual a chuva escorre, com a qual a luz produz todas as cores.  Não acredite que a escuridão é uma falta.  Nada falta.  A escuridão faz parte de nós assim como a luz.
Por isso, não molde seu caráter pelo medo.  Faça dele, antes, um companheiro e atravesse-o como se partisse o sol ao meio.  Crie essa ponte, pois nela você sempre se reencontrará.  Então, mesmo que por poucas vezes, a sensação de estar em suspense se dissolverá, e você saberá, e sentirá, e experimentará que sua partida é também seu nascimento.

Povo-formiga

Os mundos são mais do que catalogamos ordinariamente.   Fazemos tudo igual a tudo, afinal estamos sempre ligando os pontos, nos certificando da continuidade do espaço-tempo.  Mas se você descer no metrô de uma estação qualquer você verá um povo-formiga, em tudo igual ao nosso, a não ser pelo fato de que são um povo-formiga.  Ao subir novamente à superfície você poderá até se perguntar se aquele é o país desse povo-formiga.  Precisará de provas, de um mapa, de fotos do satélite do google para se convencer, mesmo que interiormente sempre reste uma parcela de dúvida.  Talvez isso seja apenas um pouco da saudável paranóia que, bem analisada, leve a filmes de ficção e suspense.  Talvez seja apenas o senso de realidade ainda não perfeitamente ajustado de um menino de seis anos.  Eu, que vejo essa desesperada busca pelas conexões constantes, que vejo, ao mesmo tempo, como um resfriado, uma dor de garganta, uma febre, um telefonema, um mofo na parede, uma dose a menos de antibiótico, uma agulha, uma teimosia, estão interconectadas de modo pouco percebido, não me espanto mais com tantos acidentes.  As conexões não estão nas linhas traçadas a força apenas, elas estão onde menos se suspeita, no documento que não está no seu nome, na promessa que você nunca irá cumprir, no outro óvulo que compartilhou com você ao mesmo tempo o mesmo oceano, na chantagem da qual você foi vítima, e na imensa coragem que você teve ao procurar ser mestre de sua pedra escondida.  Até o que você nunca fará está ligado ao que você fez.  Esse é o mistério dessas conexões despercebidas.  Não é preciso marcar cada pegada do caminho, nem atirar migalhas de pão petrificado se você abrir os olhos.  Lembra quando você se perdeu numa feira livre e voltou para casa sozinho?  Não é necessário ter medo de reencontrar o caminho se você é capaz de achar a si mesmo. Veja essa mão estendida.  Olhe agora no espelho.  Você está em boa companhia.

Céu estrelado


“Eu não queria ir, mas agora não posso voltar”.  Foi assim que ele entendeu o que se passara, por esse diálogo em forma de sonho, num sonho, e acordou sobressaltado, alerta o bastante para falar, retirar da dimensão onírica e declarar com suas próprias palavras o que ouvira.  Aos seis anos toda sabedoria é viceral.  A irmã estava dormindo no chão, junto a quem somente ela via.  E ela possuía a certeza do que via.  Dormiu no chão para acompanhar, estar junto, fazer o mesmo.
Dia após dia, tarefas burocráticas vão sendo superadas: documento, números, protocolos . Cada um deve superar a tarefa de prosseguir.  Um age como se tudo fosse uma repartição pública, tão racionalmente quanto se possa, outro aciona uma máquina-do-fim-do-mundo, tão emocionalmente quanto se possa.  Há aquele, e uso o gênero masculino indiscriminadamente para ambos os sexos,  que toca uma tristeza atávica.  Em todos os casos, em qualquer caso, algo pode ser compreendido.  O caminho dos que não partiram deve ser uma ruptura constante com o que nos aliena.  A menina que desceu da cama e foi deitar no chão parece apontar para isso.  Para um, o que aliena é a racionalidade, para outro, sua emotividade, para mais outro, sua tristeza esquecida.  Seja o que for, diante de uma ruptura, de algo que parte, podemos olhar para isso que fica, nem que seja por poucos dias apenas,  aqueles dias de perplexidade antes que a atração atômica junte as partes novamente.
Não precisamos esperar a próxima partida na qual teremos mais uma vez ficado para trás.
Algo partiu.  Algo partiu em nós.  E se a menina não for batizada?  E se os que não se falam passarem a se falar?  E se eu deixar você me ajudar?  E se eu olhar para isso que está partido?  E seu eu olhar através disso?
Escute, Fernando:  ninguém é novo demais para acordar!
Nenhum de nós precisa esperar o próximo vôo.  Por isso te convido a embarcar comigo num vôo sem destino e sem tripulação.  Então nossa partida nunca será percebida.
Por enquanto somos os órfãos do vôo 50834 com destino a Buenos Aires.  O ar está bom e o céu repleto de estrelas.

Estamos sempre atrasados


Eu  entendo  meu sobrinho que gostaria de um relógio que girasse ao contrário, só aquele tanto suficiente, uma volta ou duas, aquele tempo que é um tanto que não deveríamos ter dito nem feito,  ou aquele outro tanto, muito mais importante, que deixamos de dizer ou perdemos a oportunidade de fazer.  O relógio de Harry Potter funciona, mas ele nada muda, pois só nos tornamos quem somos no exato momento  em que  isso acontece.  Meu sobrinho ainda não sabia disso quando dava voltas no sentido contrário no brinquedo.  Vi isso em seu coração ansioso, assim como o meu.  Vi, pois assim eu também faria.  De fato ainda o faço.  Sou um viajante do tempo sempre atrasado.  Nunca encontro aqueles com quem poderia compartilhar as mudanças que faço na história.  Minhas viagens no tempo são sempre solitárias.  Aquilo que mudo somente eu vejo e, por fim, sempre retorno tarde demais.
Eu entendo o ritual para os vivos, feito pelos vivos diante da morte que nunca é deles.  Ninguém sabe o que é isso,  isso de morrer, ninguém tem essa experiência.  A experiência dos vivos é sempre de uma outra natureza, como se a natureza não abarcasse a morte mesma.  Por isso o ritual dos vivos, esse ritual de passagem, essa páscoa coletiva e solitára, seja diante do corpo e das flores e dos mantras recitados, seja diante das roupas e perfumes e das frases que brotam do coração. Também faço rituais de passagem diários, na maioria das vezes apenas para me dar conta que mais uma vez estamos sempre atrasados.
Eu entendo a dor que a mente produz diante deste mistério que é desaparecer, se desconectar.  A mente precisa produzir dor, pois é a partir dessa dor que ela determina ações de sobrevivência.  Nós, os sobreviventes, compartilhamos esse olhar de desespero e de lealdade.  Compartilhamos tanta mágoa e, instantaneamente, de uma compaixão inesperada.  Vi isso num abraço comovente,  em olhos líquidos, num andar cambaleante quase acabando, noutro andar resoluto de quem invoca a energia de todo o universo, numa frase de quem desiste, noutra frase, em forma de piada, de quem ainda tem toda uma vida para viver.  Foi assim que me tornei irmão de quem não era, e  como sempre, de novo, estava atrasado para isso, atrasado para lhe dizer qualquer coisa, para fazer qualquer coisa.
Andei entre as ruas estreitas para achar o endereço.  Cheguei primeiro.  Só havia um número antes e outro depois, ambos gravados perfeitamente.  No local mesmo, não havia número gravado, nem placa, nem nada. Mas era ali.  A gravação do número e da placa também estavam atrasados.  O sol estava a pino.  Vi minha irmã deitar as flores, as que lhe eram preferidas e repeti o número em silêncio até não mais poder esquecer.  Respirei fundo e apesar de tudo que eu estava sentindo, o ar estava bom.